Madonna Campori, Antonio da Correggio (1489-1534)
[Este texto é dedicado a Juliana. Assim como Madonna, ela é uma leonina com Lua em Virgem.]
A Cabala, do jeito que eu a entendo, não é uma religião, é um sistema mágico-simbólico. Já foi (e ainda é) usado por gente tão antitética quanto cristãos e thelemitas. O cabalista cristão renascentista Pico della Mirandola dizia numa de suas 900 teses que lhe causaram muitos problemas:
9. Nulla est sciencia, que nos magis certificet de divinitate Cristi, quam magia et cabala.(Nenhuma ciência nos certifica mais da divindade de Cristo do que a magia e a cabala)
Creio que o momento é oportuno para tentar falar um pouco da relação com a Cabala daquela que é possivelmente a mais bem-sucedida cabalista contemporânea em termos materiais (o que pode não querer dizer nada, é verdade) e como ela se reflete na sua produção artística.
Em setembro de 2001, a revista da Hebraica, um clube de São Paulo, publicou uma entrevista com Moshe Idel (professor da Universidade Hebraica de Jerusalém e um dos maiores estudiosos acadêmicos vivos da Cabala) na qual perguntava o que ele pensava sobre o envolvimento de Madonna com a tradição esotérica judaica, tendo em vista a (suposta) proibição de mulheres a estudarem. O erudito respondeu:
“A Cabala não proíbe realmente as mulheres de estudá-la, apenas não as encoraja. Assim como outras pessoas, Madonna também estuda a Cabala. Não existe uma “inquisição” que determina “isto é certo ou errado”. Um rabino cabalista talvez dissesse isto é terrível, errado. Eu não me preocupo. Vejo as coisas como elas são, tentando não julgá-las. Também não posso dizer , com certeza, que Madonna seja superficial. Quem sabe ela possa trazer alguma contribuição totalmente original à Cabala, com ângulos novos.”
O nome judaico que Madonna escolheu, Esther (אסתר), está relacionado a estrela e vale 661 em gematria (e, portanto, 666 quando precedido do artigo definido ה). Talvez tenha alguma relação com a letra da música “American Life”, na qual ela diz não ser judia nem cristã e pergunta:
“Do I have to change my name?
Am I gonna be a star?”
Pode não ter sido intencional, mas guarda relação semântica e simbólica com o fato dela ter assumido um novo nome que significa “estrela”.
A mudança de nomes com intenção mágica tem papel notadamente importante na tradição judaico-cristã. Acredita-se que em certas circunstâncias a mudança de nome pode alterar um destino funesto ou de possibilidades esgotadas.
Na Cabala o 666 tem um aspecto positivo, solar, talvez em parte por estar associado ao quadrado mágico do Sol.
Já no Cristianismo, predomina o estigma de 666 ser o “número da Besta” mencionado no Apocalipse, fazendo-o usualmente ser correlacionado à rebeldia, à transgressão e ao diabólico.
Curiosamente, no videoclipe de “What it feels like for a girl”, que tem como tema uma mulher revoltada com o mundo dominado por homens, o número 666 aparece de relance quando uma porta é batida.
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Madonna aborda conceitos cabalísticos também no vídeo da música “Die Another Day”, que faz parte da trilha sonora de um filme de 007 e toma emprestado um pouco de sua imagética.
Há duas linhas de ação. Numa o “lado negro” de Madonna combate sua contraparte luminosa, o que lembra um trecho de um livro fundamental da tradição cabalística, o Sêfer Ietsirá:
“'Deus também fez um oposto ao outro'(Eclesiastes 7:14) O bem oposto ao mal, o mal oposto ao bem. O bem vem do bom, o mal vem do mau. O bem define o mal e o mal define o bem. O bem é guardado para os bons e o mal é guardado para os maus.”
A isso a cantora mistura a doutrina do judeu rebelde Sigmund Freud, um dos grandes paladinos do ateísmo no século XX. Eros e Thanatos, pulsão pela vida e pulsão pela morte.
E, na outra linha de ação, exterior, ela é torturada por um bando malfeitores. Aí ela aparece com as letras hebraicas לאו lamed-alef-vau [que podem ser a transliteração da palavra inglesa “love” e também um (ou talvez dois) dos 72 nomes divinos tradicionalmente extraídos de certa passagem de três versículos do Êxodo], pintadas no braço direito. Na simbologia cabalística o braço direito corresponde à sefira Chesed (חסד), a Misericórdia de Deus e cujo nome vale 72.
Nesse vídeo, Madonna parece tratar do tema tradicional da grande guerra santa (interior) em contraposição à pequena guerra santa (exterior), mostrando que uma se reflete na outra. Como disse Idel, talvez a cantora não seja tão superficial quanto pode parecer à primeira vista.
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